Da Justiça à Segurança Pública, passando pelos sinos, tambores e atabaques.
Quem já leu José Saramago, já sabe o que esperar. Uma literatura irônica, nem sempre sutil, à exemplo do texto especialmente elaborado para o Fórum Social Mundial 2002, cujo título é “Da Justiça à Democracia, passando pelos sinos”.
No texto em questão o Prêmio Nobel de Literatura nos conta uma história que se passa na idade média, no tempo em que o sino da Igreja ainda regulava a vida da comunidade que, através dele, se informava e, não raro, se reunia para deliberar sobre os assuntos mais diversos. Certo dia, numa pequena aldeia das redondezas de Florença, enquanto todos se encontravam ocupados nos seus labores, começaram a ouví-lo bater vagaroso e triste. Anunciava a morte de alguém.
Surpreendidos com o toque fúnebre, os aldeões reuniram-se diante da porta do templo, mas em lugar do esperado sineiro quem de lá saiu foi um camponês que, vítima de um latifundiário que todo dia lhe roubava mais um pedaço da propriedade, depois de suplicar, protestar e bater em todas as portas sem nada conseguir mudar, resolveu usar um último recurso: o sino da igreja. Foi o que explicou aos aldeões: “não sei onde está o sineiro. Eu vim, aqui, hoje, para anunciar a morte da justiça”.
A metáfora muito original usada por Saramago e que põe em evidencia a morte da justiça, também pode ser usada, neste país de pizzas e panetones recheados de dinheiro, para chamar a atenção para o estado a que chegou a segurança pública entre nós, pois: “neste mesmo instante em que vos falo, longe ou perto daqui, na porta de nossa casa”, alguém furta, rouba, estupra e/ou mata.
Tem sido muito difícil nos últimos anos observar a forma como a segurança pública e os seus profissionais têm sido tratados na Bahia, pois longe da imagem de tranqüilidade dos “territórios de paz” divulgada pela propaganda oficial e da eficiência cinematográfica de certas operações policiais “o dia conta histórias sempre iguais”.
A insensibilidade, a frieza e a indiferença pelo sofrimento alheio são explicitados em tantas ações e omissões que, para além do desdém explicito, ao meu modo de pensar, descortinam algo mais sério, mais profundo, que precede tais posicionamentos alheios à sociedade: a perda do apreço pelo humano.
Certamente não foi por acaso que o camponês de Florença – como nos conta Saramago – escolheu o sino para anunciar a morte da Justiça, há mais de 400 anos. Foi pelo simbolismo do sino na vida humana.
Como Saramago, também proponho a mobilização da aldeia – antes que seja demasiado tarde, como diria Chomsky – não mais aquela, diminuta, de quatro séculos atrás, mas a atual aldeia soteropolitana, baiana e brasileira para defender a segurança, o patrimônio, a integridade física e a vida do cidadão. Daí o apelo à metáfora brilhante do badalar tristonho do sino do camponês florentino!…
Quem sabe um gesto de exasperada indignação de por a tocar os sinos, os tambores e os atabaques de todas as igrejas, templos e terreiros de Salvador, sem diferença de raças, credos e costumes, com todos eles, sem exceção, acompanhando o dobre de finados pela morte da segurança pública, não haveria de acordar os governantes, sempre muito ocupados com a gestão de situações imediatas e imediatistas voltadas para objetivos midiáticos e eleitorais, sempre distantes da simples percepção dos perigos cotidianos que ameaçam a nós cidadãos.
Para isto nós precisamos do dobrar de todos os sinos, dos múltiplos ecos dos movimentos de resistência e mobilização social que se propõem a construir uma outra aldeia, uma outra cidade, um outro estado e um outro país diferentes do inferno de corrupção e violência em que se transformaram os atuais.
Quando os sinos dobram pela justiça e pela segurança pública dobram por todos nós. Ouçamo-los!
*Antonio Jorge Ferreira Melo é coronel da reserva da PM-BA, professor e pesquisador do Progesp (Programa de Estudos, Pesquisas e Formação em Políticas e Gestão de Segurança Pública) da Ufba, da Academia de Polícia Militar e da Estácio / FIB.
