O corpo como alvo da sanção disciplinar e suas consequências
Enquanto que em instituições que possuem regime disciplinar moderno as sanções administrativas previstas atingem tão só a relação servidor x serviço público (1), reconhecendo na aplicação da penalidade administrativa o caráter educativo que lhe é inerente, os órgãos que atuam sob regime militarizado adotam, ainda, sanções que ultrapassam essa relação, que afrontam direitos básicos do indivíduo, que não alcançam, definitivamente, o resultados de prevenir, reprimir ou, utopicamente, educar, e que, em verdade, se constituem tão só em castigos que humilham e destituem o militar da sua dignidade e que não reparam, de forma alguma, o dano ou lesão causado pelo infrator ao serviço público.
Celso Antonio Bandeira de Mello (2009, p. 842), ao se referir aos objetivos da aplicação da sanção administrativa, afirma que:
Não se trata, portanto, de causar uma aflição, um “mal”, objetivando castigar o sujeito, levá-lo à expiação pela nocividade de sua conduta. O Direito tem como finalidade unicamente a disciplina da vida social, a conveniente organização dela, para o bom convívio de todos e bom sucesso do todo social, nisto se esgotando seu objeto. Donde não entram em pauta intentos de “represália”, de castigo, de purgação moral a quem agiu indevidamente […]
A história recente da aplicação das sanções disciplinares no âmbito das organizações militares no Brasil, no entanto, reflete a dificuldade dessas instituições em compreenderem esse mecanismo posto à disposição da Administração como uma ferramenta com a qual “se pretende tanto despertar em quem a sofreu um estímulo para que não reincida, quanto cumprir uma função exemplar para a sociedade” (MELLO, 2009, p. 842).
Até o início do século XX, portanto em um momento histórico no qual o Brasil se inseria como uma nação no qual eram vigentes o regime e os princípios republicanos, castigos corporais ainda eram utilizados como sanção administrativa na Marinha, fato este que serviu como um dos motivos para o acontecimento da Revolta da Chibata (2). Na atualidade, passados mais de cem anos desde a ocorrência da citada Revolta, no âmbito das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica) e de muitas das Policias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, a prisão administrativa do transgressor disciplinar, algo que, ainda que não seja um castigo físico propriamente dito, se constitui indubitavelmente numa relação “castigo-corpo” (3), continua a ser largamente aplicada (4).
Na PMBA, a sanção de prisão administrativa, que previa o encarceramento ou o “confinamento do punido em local próprio e designado para tal” (5), teve a sua aplicação proibida apenas a partir da Constituição Estadual de 1989 que garantiu:
Art. 46 […]
§ 8º – Quando a sanção disciplinar, por transgressão de natureza militar, importar em cerceamento de liberdade, será cumprida em área livre de quartel.
No entanto, permanece ainda a previsão de aplicação da sanção de detenção administrativa que, embora não encarcere o policial militar numa cela, limita a sua liberdade, por até 30 (trinta) dias, aos muros do quartel onde ele estiver detido.
Trata-se, sem dúvidas, de medida que se assemelha muito com as características de prisão civil, algo que, embora previsto no art. 5º, inciso LXVII da CF/1988, atualmente só se aplica ao devedor de alimentos, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal exarado através da edição da súmula vinculante 25 (6), a qual foi precedida pelo julgamento do Recurso Extraordinário n°. 466.343-1, que, muito embora não guarde relação direta com assunto ora tratado, demonstra através do pronunciamento do Relator, Ministro Cezar Peluso, a importância da questão da adoção de medida extrema (a prisão) como meio de coação para o cumprimento de uma obrigação civil, fato que, por raciocínio, no âmbito das organizações militares pode ser estendido para uma reparação administrativa, fenômeno que frontalmente afronta o princípio da dignidade da pessoa humana:
Mas, no instante em que o espírito humano evolui, e os ordenamentos jurídicos passam a assumir o valor fundamental que tal evolução revela em termos de consciência, reconhecimento e respeito da dignidade da pessoa humana, sobretudo de respeito ativo da dignidade do corpo como elemento essencial da concepção plena do ser humano, já não é possível pensar, naqueles mesmos termos, o corpo humano como objeto suscetível de experimentos normativos que impliquem sua submissão à violência de técnicas de coerção física para cumprimento de obrigações de estrito caráter patrimonial,[…]
É coisa inconcebível. E inconcebível é, agora, que continuemos a admitir, de modo claro ou velado, que o corpo humano possa ser objeto de técnicas de violência física para induzir o cumprimento de obrigações de caráter patrimonial.[…]
De modo que, Senhora Presidente, sobretudo porque a Constituição eleva a dignidade da pessoa humana a um dos fundamentos da República, e cujo primado, pelo menos do ponto de vista axiológico, está, no espírito do tempo, acima dos direitos e garantias do art. 5º, não é possível retroceder à bárbara concepção de que o ser humano é mero corpus vilis, sujeito a qualquer medida normativa violenta.(grifo nosso)
O militar, quando passa a compor as fileiras da instituição a qual se vincula, não o faz dando como garantia o seu corpo, o faz através da lógica capitalista que o obriga a vender a sua força de trabalho. Logo, o que deveria ser objeto principal da sanção administrativa seria a relação jurídica estabelecida entre o Estado e o servidor, ou seja, a relação de trabalho, não o corpo do militar ou o seu direito de locomover-se livremente.
O legislador constitucional, compreendendo a prisão como uma medida extrema a ser adotada e as consequências dos seus danos, estabeleceu que a mesma só pode ocorrer em casos de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judicial competente (observados todos os requisitos necessários à sua decretação) (7).
O detalhe, e sabe-se que o diabo mora nos detalhes, é que a Carta Magna prevê a prisão nos casos de cometimento de crime propriamente militar e, absurdamente, para os casos de transgressão militar!
Não há argumento minimamente razoável que justifique um rigor necessário para que a prisão aconteça em desfavor de um “cidadão comum” e uma completa e, porque não dizer, maldosa displicência para com aqueles submetidos ao código penal e regulamentos disciplinares militares.
A prisão, detenção, limitação de final de semana, impedimento ou qualquer outro eufemismo criado no âmbito da administração militar para substituir o termo “cerceamento do direito de ir e vir” é algo tão importante e traz consequências tão negativas que deveria ter sido objeto de maior zelo por parte do legislador constitucional ou ordinário quanto à (des)necessidade da sua aplicação.
O Conselho Nacional de Segurança Pública (CONASP), órgão ligado ao Ministério da Justiça, reconhecendo o anacronismo das instituições policiais militares que ainda mantêm nos seus regulamentos e estatutos disciplinares a previsão de restrição e privação de liberdade como sanções administrativas, elaborou, em 20 de abril de 2012, a Recomendação n° 12, através da qual sugere a vedação desse tipo de pena no âmbito das Policias Militares e Corpos de Bombeiros Militares (8).
O encarceramento não produz nenhum resultado positivo. Todo o seu produto serve apenas para infligir ao sancionado administrativamente o sentimento de humilhação, a pecha de criminoso e o dano psicológico causado pelo fato de os seus pares, superiores, familiares, dentre outras pessoas, ao saberem que o mesmo foi ou está preso ou detido…, dada a cultura que impera no Brasil de que lugar de bandido é na cadeia (ou na vala!), é um potencial e, quem sabe, perigoso delinqüente.
Como visto, o encarceramento ou a suspensão do direito de ir e vir do policial militar infrator disciplinar, além de desnecessária, é, sem dúvida, uma das maiores violências que pode sofrer um indivíduo, pois este, por razão decorrente de prática exclusivamente administrativa, tem suspenso um dos maiores direitos conquistados pelo ser humano: a liberdade.
Art. 15. As punições disciplinares previstas neste regulamento, são:
[…]
3 – Prisão:
a) fazendo serviço, ou comum, até 30 dias;
b) sem fazer serviço, até 15 dias;
c) em separado, até 10 dias. Lei estadual n° 11.817/2000 (Código Disciplinar dos Militares do Estado de Pernambuco)
Art. 28. As penas disciplinares militares a que estão sujeitos os militares estaduais, segundo o estabelecido na Parte Especial deste Código, são as seguintes:
I – repreensão;
II – detenção;
III – prisão;
IV – […] (5) Decreto estadual n° 29.835/1983 (RDPMBA) – Art. 26 – A prisão consiste no confinamento do punido em local próprio e designado para tal. § 2° – São lugares de prisão:
a) para oficial, o determinado pelo comandante no aquartelamento;
b) para subtenente e sargento, compartimento denominado “Prisão de Subtenente e Sargento”;
c) para as demais praças, o compartimento fechado denominado “Xadrez”. (6) Súmula Vinculante 25:
“É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.” (7) CF/1988, art. 5º, LXI:
“ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. (8) 1 – O Pleno do CONASP/MJ recomenda:
1.1 – ao Ministério da Justiça que adote junto à Presidência da República e Congresso Nacional, as providências necessárias à revisão do Decreto-Lei 667/69, a fim de vedar a pena restritiva e privativa de liberdade para punições de faltas disciplinares no âmbito das Polícias e Corpos de Bombeiros Militares, alterando o seu artigo 18.
1.2 – Aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal que adotem em seus respectivos entes federados, enviando às Assembléias Legislativas/Câmara Distrital, projetos de Lei alterando os regulamentos disciplinares, extinguindo a pena restritiva de liberdade em conformidade com o sugerido para a alteração do Art. 18 do Decreto Lei nº 667/69.

é Capitão da Polícia Militar da Bahia.
Contato: asfors10@yahoo.com.br